segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Deuses nascem?


Coisa estranha deve ser assistir o nascimento de um deus. Não posso mesmo afirmar que tenha contemplado tal parto em minha curta memória. A vida é longíssima, mas a memória não. É como se os seres fossem dotados de um HD pequeno demais para armazenar todo o conteúdo acumulado de filmes, fotos, jogos, etc.. Todas essas maluquices que fazem parte disso que chamam por aí de vida e que, no fundo, também não se sabe exatamente do que se trata.
As circunstancias que precedem o nascimento de um deus são estranhas. Lógico que não seriam de outro modo, afinal, o que pode ser mais paradoxal que um deus. Para além de todas as mitologias ou definições de especialistas, a singularidade da essência divina não está pautada em uma ou mais definições, mas em uma simples constatação, basta apenas ao implicado entender que se é um deus. Pronto, estão resolvidos todos os problemas.
Brincadeiras à parte, pelo contrário, é aí que começam, de fato, os problemas. Um deus é, fundamentalmente, um criador. E quase obrigatoriamente, quando nasce um deus, também nasce um novo universo. Isso talvez vá te dar um nó no estomago, e me parece ser uma ótima definição do que é o caos. Digamos que cada indivíduo é um deus em potência, para cada deus há um universo de infinitas possibilidades, dentro de cada um destes universos, existem mais indivíduos que são deuses em potência, e que também criam novos universos, e assim infinitamente. O argumento não poderia ser mais velho, o princípio de todas as coisas é exatamente o que é capaz de interromper esta série, mas isso não nos interessa, mas sim tornar-me um deus.
Digamos que um deus nascituro conhece apenas seu próprio nascimento, isso quando se dá conta daquilo que, de fato, se tornou. Sua tarefa apenas começa, pois há que se criar, ou recriar tudo a sua volta. E aqui começa nossa teogonia, o desenrolar de um novo universo que nasce.
 Mas é estranho considerar que esta tarefa não se completará de maneira linear.  o nascimento de um Deus é paradoxal.  Em tese, um Deus não nasce, Mas sempre é.  Portanto, o estranhamento que se experimenta aqui deve-se ao fato de que este nascimento divino não vai considerar a temporalidade como algo razoável, e quaisquer lacunas que se pretenda preencher ao longo desse processo, deverão sim respeitar a temporalidade, mas do tempo que é imposto por este Deus que agora nasce.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Primeiras impressões (continuação)


Há pouco tempo tive contato com a magia do caos, após longo percurso teórico por diversos sistemas, sempre me foi algo difícil aderir a um sistema mágico em particular. Todos eles me pareciam um tanto vinculados às mesmas premissas religiosas que me sempre me afastaram de qualquer culto. O mágico sempre me pareceu natural, ao passo que o religioso me foi servido com grandes doses de imposição e artificialidade. Não é meu objetivo fornecer um diagnóstico disso, até por que, me parece impossível contemplar a totalidade deste quadro sem distorce-lo. A magia do caos me pareceu ser o início de um novo movimento, que pode ter força para apontar uma nova era, seja lá o que isso signifique. No entanto, sua aparente simplicidade converte-se em complexidade quase incompreensível para nossas almas, já que a dualidade presente na existência como tal é a base de sua (in)compreensão. É importante ironizar esse aspecto, pois todo aquele que afirma compreender a magia do caos está, ao mesmo tempo, dizendo algo verdadeiro e também falso, algo próprio a tudo que se coloca diante do caos e é despido de sua dualidade. Nesta contradição é que mora a força da investigação, a tentativa de compreensão do caos é também aquela de se aproximar dos limites próprios à dualidade. Basta lembrarmos de um dos exercícios fundamentais do movimento, a “postura da morte” de Spare, além de sua utilidade para o magista, pode ser vista, do ponto de vista conceitual, como a tentativa, pelo praticante, de unificar dois elementos fundamentais a todo àquele que experimenta a dualidade, a vida e a morte. Todo àquele que afirma a vida, nega a morte, e vice-versa. Neste caso, a postura de Spare conduz o praticante a um estado em que ambos são experimentados simultaneamente, e o resultado é sua mutua neutralização, o que leva ao alcance de seu resultado, a gnose. Não se perturbem com minha descrição sumária deste assunto, há muita literatura disponível sobre o assunto, e olhos atentos podem encontra-la facilmente por aí.
E a busca por essa experiência, que configura a tarefa fundamental do praticante, torna-se também um amplo quebra-cabeças. Para além da simplicidade do caos, mora um prisma infinito de imagens. Tais, essencialmente dualizadas, guiam e confundem seus perseguidores. Quanto a mim, considero que não pode haver magia do caos sem certa confusão, equivoco e acerto permanecem atrelados até que a dualidade se rompa, sucesso e fracasso, luz e escuridão, etc...
Assim, minha busca por essa compreensão está atrelada à tentativa de ultrapassamento destas imagens, utilizando qualquer via que permita isso. A arte me parece um mecanismo razoável para isso. Seja qual for sua manifestação, o artista se confunde, em alguma medida, com o magista, pois sempre carrega em sua obra, uma tentativa de tradução deste caos contido nas dualidades presentes no mundo. Escolhi a literatura como caminho investigativo, primeiro por sua amplitude, e também devido ao que considero como sendo sua característica mais caótica, que sempre enuncia uma pretensão ambígua, simultaneamente objetiva e subjetiva. É também por isso que pretendo lançar aqui minhas narrativas, tentativas pessoais de explorar e desdobrar estas imagens, gota a gota.  Esta empreitada parece não ter fim, mas nenhum de nós deve ter pressa, afinal, o tempo é apenas mais uma imagem da dualidade.


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Primeiras impressões

Não entendo muito o porvir. Não foi uma simples curiosidade o que me trouxe até aqui. Eu poderia, facilmente, dizer que foi a própria vida quem fez isso. Um sentimento de vazio, depressão, ansiedade,  doenças do mundo atual; sintomas claros de inadequação ao cenário que os homens construíram para si. Premissas de que a humanidade precisa enfrentar um novo despertar. 
Sempre desconfiei do espiritual, mas também fui sempre fascinado por ele. Desde a mais tenra infância, os elementos que configuram a possibilidade de um mundo para além deste, sobrenatural, mas apenas por estar um passo além do que é tradicionalmente dito natural, me foram objeto de dúvida e medo. Cauteloso, muito cedo aprendi que o mal praticado sempre retorna como um mal maior, e fui profundamente marcado por isso em minha caminhada. Sempre tratei o espiritual com cautela e discrição, tentando me equilibrar entre um ceticismo radical e um espiritualismo brando, sem, de fato, tocar profundamente um ou outro. 
Este longo tempo serviu para que pudesse quantificar o que considero como um sintoma, o de uma espécie de insuficiência. Me parece que os seres humanos tenham vivido apenas a parcialidade do quadro total. Sem enxergar adequadamente o todo, sempre acabaram por apressar suas conclusões e conduzir a história a suas encruzilhadas famosas. É destas encruzilhadas, resumidamente, que se retira o medo e toda cautela em relação ao sobrenatural. 
A existência humana é paradoxal, por isso a magia também lhe será paradoxal, não que isto lhe seja um atributo essencial desta última, mas apenas fruto da visão humana.  Se a existência humana pode ser efetivamente mágica, então quaisquer das barreiras que tenham sido impostas as estas práticas ao longo de nossa breve história, são barreiras humanas e não mágicas. 
Isso cria duas coisas, um freio e um impulso. O freio reside na lenta compreensão de todo o processo de compreensão da magia que permeia essencialmente a existência, paradoxalmente transitando entre o sim e o não, entre o tudo e o nada, o cheio e o vazio, o pleno e o corrupto. O impulso é o que torna essa experiência quase infinita em suas possibilidades, sendo isso, finalmente, a razão pela qual esses escritos são e continuarão sendo produzidos. A magia é manifestação natural da humanidade, compreendê-la é uma de suas tarefas fundamentais.  (continua)